Quando entendi que aquele som era a maneira de comunicar que alguém estava à porta e precisava falar com o dono da casa, em minha mente se descortinou a consciência de estarmos em um lugar muito diferente da nossa realidade. Gabu é um lugar onde o tempo esqueceu de correr, onde as pessoas são tão gentis que emitem um som de criança para bater à porta e dão grande valor aos atos de parar e conversar, cumprimentar, ou, como eles dizem, dar “mantenha”.
Dar mantenha chega a ser algo tão precioso para os guineenses de Gabu que, independentemente da etnia da qual façam parte, o sonoro “I kuma?”(1), dito em crioulo(2), é entendido por fulas, mandinkas, balantas, brancos, cristãos, muçulmanos e animistas(3); e ainda que não seja respondido no mesmo dialeto, um simples aceno de cabeça deixa claro que você sabiamente investiu alguns segundos para cumprimentar a pessoa que passou.
E foi com esse senso de entender que lá as coisas acontecem de bocado em bocado, assimilando a ideia de que o cronograma estabelecido não seria cumprido do nosso jeito planejado, respeitando o ritmo guineense de viver e a cultura absurdamente diferente que conseguimos cumprir o propósito da viagem: compartilhar sementinhas contendo o poder do empreendedorismo. Essas sementes foram cuidadosamente plantadas no solo fértil do coração dos guineenses de Gabu. No tempo certo, veremos a colheita e celebraremos com o nosso Deus.
As lutas para o cumprimento da missão não passaram despercebidas. Foram dias com problemas respiratórios durante toda a nossa estadia em Gabu e noites em claro acompanhadas de um medo opressor, que calculadamente cessou na noite após a capacitação dos obreiros nacionais e missionários brasileiros. A atmosfera de Gabu é espiritualmente pesada e as constantes rezas mulçumanas chegam a ser intimidadoras, iniciando às 5 horas da manhã e se repetindo mais 4 vezes ao longo do dia.
Em Gabu, há um exército empenhado em manter os nacionais(4) presos na religiosidade e nas práticas animistas. Esse mesmo exército se dedica a diminuir a mulher, que faz trabalhos pesados enquanto seus maridos tomam chá sentados à sombra das árvores. Nessa terra de antigamente, é cultural a realização de circuncisão feminina e masculina feita em uma cerimônia chamada “Fanado”, que consiste na iniciação dos jovens na vida social e na transmissão de conhecimento. Também encontramos uma escravidão moderna de meninos por meio do sistema de educação do Talibês(5).
E, ainda que o pano de fundo não seja de justiça, igualdade e prosperidade, a vida continua acontecendo em Gabu, na África. Muito distante da imagem do abutre à espera da morte da criança, lá existem cenas de esperança visíveis no comércio local, na época de colheita do caju e na liberdade de crença da nação. Essa liberdade permite que grupos de missionários cristãos possam atuar levando educação, saúde, entretenimento e confiança para nossos irmãos guineenses.
Evaldo e eu fomos compartilhar nossas experiências de mais de 12 anos com o empreendedorismo, pois acreditamos que essa é uma ferramenta poderosa para mudar realidades, como a nossa própria foi mudada. Por meio do Programa Classe Empreendedora, levamos quatro oficinas de empreendedorismo para diferentes grupos:
- Negócios de impacto social, modelagem de negócios e prototipação, para missionários com projetos iniciados.
- Empreendedorismo como estilo de vida e modelagem de ideias e negócios, para missionários e obreiros locais.
- Noções básicas para iniciar um negócio, para pequenos empreendedores locais.
- Palestra inspiradora “Pense fora da caixa”, para alunos de ensino médio e professores.
Conseguimos alcançar e motivar 32 pessoas e já pudemos contemplar a articulação de algumas destas na geração de 6 negócios locais, como criação de galinhas, criação de porcos, restaurante, venda de roupas, venda de lanches e fábrica de gelo.
Além das oficinas, fizemos filmagens e fotografias para preparar material de divulgação e captação de recursos para os programas das bases missionárias da JOCUM e WEC missões, ONG Casa do Cego e Projeto Casa Viva. Com esse material devidamente editado e exposto na internet, através de sites profissionais, esses programas poderão receber mais visibilidade e, então, mais pessoas poderão contribuir com seus dons e talentos.
Quando fomos desafiados a estar na África, em missão, jamais imaginaríamos que o pouco que compartilhamos seria tanto para eles. Ver a gratidão dos participantes exposta ao final de oficina nos trouxe a sensação de sermos úteis para o reino de Deus e isso fez todo o trabalho valer a pena. Também não sabíamos que seríamos agraciados com amizades inspiradoras que nos revelam detalhes de como fazer o reino de Deus alcançar a terra.
Queremos voltar a Gabu, ouvir o crioulo novamente e dar mantenha a todo instante. Queremos ver aquele céu estrelado e sentir a brisa fria nas noites de fevereiro. Queremos orar e louvar juntos às 7 horas da manhã e às 5 da tarde todos os dias. Queremos que Deus nos permita ver as sementes do empreendedorismo brotando e dando frutos de vida para aquela nação.
Ahhh Gabu, você já mora nos nossos corações e estará para sempre nas nossas orações. Assim como você nos ensinou o “Estou à porta”, em crioulo, (Kon Kon), queremos ver você entender que Jesus também está à sua porta e, quando você abrir, cearemos juntos comendo um delicioso doce de Mancara (6).
- “I kuma?” significa “Como você está?”, em crioulo.
- Crioulo é o dialeto usado em Guiné Bissau.
- Animista é a visão de mundo em que entidades não humanas possuem uma essência espiritual. O animismo é usado na antropologia da religião como um termo para o sistema de crenças de alguns povos tribais.
- Nacionais são os nativos de Guiné Bissau.
- Talibês é um sistema tradicional de educação que veio a tornar-se uma forma de escravatura moderna. Todos os dias, durante oito horas, as crianças Talibês pedem nas ruas, de acordo com as exigências dos “marabouts” – os que lhes deveriam dar a sua educação.
- Mancara é amendoim.
Deus obrigada!
Ao projeto Missionar da Primeira Igreja Batista em Curitiba, que assim como em nós, também está estimulando a muitos entenderem melhor o mundo de missões. Aos nossos líderes (Gui, Cris, Clau e Yas) que acreditaram que perderíamos contribuir com o crescimento do reino de Deus e nos motivaram e apoiaram tanto. À nossa célula e aos amigos do pastoreio que nos cobriram em amor e oração. Aos irmãos, amigos e familiares que decidiram ofertar na obra de Deus nos ajudando com finanças, doação de produtos e orações. Aos irmãos em Cristo que nem nos conhecem e mesmo assim ofertaram para o cumprimento da missão. À linda Lilian de São Paulo que motivou sua igreja a entrar em jejum por nossas vidas. Aos missionários da base de JOCUM em Gabu que nos receberam com amor, suas histórias nos inspiram. Aos amigos Giane e Jefferson, usados por Deus para impactar nossas vidas, nos abrindo os olhos para muitas possibilidades de usar nossos dons e talentos para servir nosso Deus e nossos irmãos de qualquer parte do mundo. Ao nosso Deus, que realizou nosso sonho da época de adolescência quando nos levou à África.
Para saber mais, acesse www.evaldoecintiaemmissao.com.br
30 de março de 2018 Cintia Fernandes Categoria: Cristã
No Comments